domingo, 28 de maio de 2017

The hours

"Mrs. Dollaway disse que ela própria iria comprar as flores."
Clarissa Dolloway esteve comigo há 9 anos atrás. Chegou até mim em Fevereiro de dois mil e oito, provavelmente resgatada de uma dessas casas empoeiradas de livros usados pelo centro do Rio. Hoje elas quase não existem mais. São dois romances de Virgínia Woolf em um só livro de capa dura. a segunda história nunca ousei começar, "Orlando". Um dia quem sabe. Orlando nunca fora lido mas já deu nome a um de meus pseudônimos (ou seria heterônimos?), devia ser porque me soava familiar a complexidade do nome. No ano seguinte, Clarissa esteve comigo outra vez, apesar de eu só me recordar da personagem no filme baseado na história, "The Hours", e não das suas verdadeiras minúcias deflagradas na escrita. O fato é que li dois anos seguidos a mesma narrativa e hoje me recordo de muito pouco, a não ser das expressões de Meryl Streep interpretando a senhora Dolloway, esta que saiu pela manhã a procura de flores. Minha memória é bastante fraca. Dói porque cresce a cada ano a sensação de auto-abandono. e auto-abandonar-se é não reconhecer-se. Não sei se isso é próprio da fase adulta em si, da velhice - que me é precoce ou não. Sei que é triste. e que há uma ininterrupta sensação de ignorância crescente, de esvaziamento que nada preenche. Mas resgato-me como posso. 
Hoje eu disse que eu mesma sairia para comprar as flores. e só compro flores quando me recordo de Clarissa Dollaway e desse primeiro trecho do romance. Estranho do porquê isso ficou. Algumas coisas a gente só entende com olfato, tato ou paladar.
Acontece que o aroma dos lírios que pus na janela embriagou o quarto por inteiro. O vento traz o cheiro doce numa curva certeira e parece que foi deus quem escolheu o posicionamento do arranjo. As vezes penso que esse cheiro que me vem é de morte, mas se for, é do cheiro da morte que meus sentidos precisavam se anestesiar, algo do tipo morrer-se toda para renascer-se toda. A normatividade da gramática que me perdoe e a licença poética que me salve. 
Então hoje, eis que fui salva sem pretensão de o ser. Fui salva. E sei disso porque me deu uma vontade repentina de escrever qualquer coisa como isso. Não me ocorria há anos. Não com essa paz. São três os lírios, metade meus metade de Clarissa: um aberto esbanjando beleza branca e branda, o segundo está aberto pela metade e o último ainda dorme, fechado. Rezo pra que desabrochem todos. e depois morram. Assim podem dar espaço a mais um domingo de mais um arranjo na janela do quarto, rosas amarelas quem sabe. Assim controlo o tempo que passa, the hours. Elas precisam passar. Vão passar.